Sociólogo polonês, conhecido mundialmente por seu conceito de Modernidade líquida
- em que as ideias de emancipação, individualidade, tempo/espaço,
trabalho e comunidade estão propensas a mudar com rapidez e de forma
imprevisível. Bauman é professor emérito de sociologia nas Universidades
de Leeds (Inglaterra) e de Varsóvia (Polônia). Agraciado com o Prêmio
Príncipe das Astúrias de comunicação e humanidades em 2010, tem mais de
vinte obras publicadas no Brasil, dentre as quaisModernidade líquida, O mal-estar da pós-modernidade e Vidas desperdiçadas.
Entrevista exclusiva concedida à revista Comunicação
Empresarial em sua casa, no Reino Unido, para debater as narrativas e
habilidades requeridas pelos desafios contemporanêos.
O PAPEL DO TEMPO
Eu não acredito em autobiografias. Porque, provavelmente, em algum momento da sua vida você vai se sentir impelido a reescrever a sua história e se verá tentado a preencher as lacunas em sua memória.
Eu não acredito em autobiografias. Porque, provavelmente, em algum momento da sua vida você vai se sentir impelido a reescrever a sua história e se verá tentado a preencher as lacunas em sua memória.
A
memória não é um bom guia para seguir porque cada memória é seletiva. Não há
dúvidas de que não podemos lembrar de tudo, nossos cérebros não são feitos para
isso, apesar de termos agora a computação em nuvem e, com isso, podermos
guardar as nossas memórias em outro lugar, distante, sem mantê-las em nossos
cérebros. No entanto, há uma abundância de espaços em branco que você tem que
preencher para dar sentido aos eventos, e você os preenche pela imaginação.
Assim, o que se diz pode ser verdade, mas talvez não. Talvez houvesse uma tal
relação causal entre o evento A e o evento B, mas apenas eventualmente.
Tenho
tido uma vida incrivelmente longa. Atravessei uma enorme quantidade de
mudanças, o que se poderia chamar de “a conversa mais antiga da cidade".
Ou, em uma linguagem mais politicamente correta, poderíamos chamar de uma “mudança
de modas" – a moda, quando eu era jovem, mudava a cada dez anos, agora
muda a cada dez dias; apenas isso já é uma diferença. Além disso, diferentes
regimes, diferentes programas políticos, todos os tipos de coisas. Por isso,
estou dolorosamente consciente, em primeiro lugar, do papel do tempo na vida
individual. Não só na história, mas na vida individual, na biografia. Mas,
também, do transitório e temporário caráter da realidade.
Václav
Havel, um homem tcheco muito corajoso, passou anos e anos de sua vida em
prisões políticas, e a outra parte em palácios presidenciais. Conheceu,
portanto, a política por dentro e por fora. Para resumir sua experiência, ele
disse que, a fim de influenciar o futuro, você precisa saber quais músicas a
nação está disposta a cantar. Mas, imediatamente em seguida, ele acrescentou
que a grande questão é que não há maneira de prever que tipo de músicas a nação
estará disposta a cantar no próximo ano.
Eu
acho que faz sentido, que é de fato o que está acontecendo. Nós estamos vivendo
uma vida fragmentada; um dos meus livros se chama Vida em fragmentos. Fragmentos são período de
tempo com um começo e um fim, de modo que um fragmento pode ser separado do
outro. O que é uma ilusão, claro, porque não funciona assim. Mas tornou-se
nossa política de vida: terminar algo e começar uma coisa diferente.
INTERDEPENDÊNCIA GLOBAL
Dentro de suas próprias fronteiras, cada país deveria ser capaz de arcar com as suas contas, de ser autossuficiente. Militar, econômica e culturalmente, eram requisitos muito elevados. É preciso ser grande, rico em recursos, ser capaz de fortalecer a estrutura e a economia nacional, assegurar a sobrevivência social, biológica e legal, e afirmar a independência cultural. O que significa fornecer todos os parâmetros de vida, todos os valores necessários para o funcionamento de uma sociedade. Sem esses elementos, qualquer país, mesmo um país grande como o Brasil ou os Estados Unidos da América, não poderia reivindicar a autossuficiência real.
Dentro de suas próprias fronteiras, cada país deveria ser capaz de arcar com as suas contas, de ser autossuficiente. Militar, econômica e culturalmente, eram requisitos muito elevados. É preciso ser grande, rico em recursos, ser capaz de fortalecer a estrutura e a economia nacional, assegurar a sobrevivência social, biológica e legal, e afirmar a independência cultural. O que significa fornecer todos os parâmetros de vida, todos os valores necessários para o funcionamento de uma sociedade. Sem esses elementos, qualquer país, mesmo um país grande como o Brasil ou os Estados Unidos da América, não poderia reivindicar a autossuficiência real.
A
questão da cultura nacional hoje é muito mais a questão sobre como estamos
conectados com todo o resto do planeta. Você pode chegar à Nova Zelândia ou a
Leeds com a mesma facilidade com que pode alcançar seu vizinho de porta, em São
Paulo. Demora menos tempo ainda porque, antes, tínhamos que ir a algum lugar
para encontrar nosso vizinho. Mas agora não temos que ir a qualquer lugar. Em
um segundo, ao toque de uma tecla, encontra-se alguém. Enviar um tweet, receber
um tweet, responder a um tweet, tudo leva apenas alguns segundos. De fato, pertencemos
todos à circulação de grupos culturais ao redor do mundo. O mesmo se aplica,
por exemplo, às questões militares. Mesmo os Estados Unidos da América chegaram
à conclusão de que eles não podem se defender sozinhos, eles precisam de
alianças, precisam de aliados. E, finalmente, a economia. Sem a importação e a
exportação de produtos, você será muito pobre. Além da Coreia do Norte e Cuba –
em parte, não pela sua própria escolha – não há outros países que ainda sonham
ser autossuficientes dentro dos seus próprios limites econômicos.
Com
isso, os testes nos quais um grupo de pessoas deve passar com sucesso para ser
reconhecido como uma entidade política independente foram reduzidos. Você não
precisa ser realmente poderoso, rico e muito criativo culturalmente para
merecer ser reconhecido como um país independente. Pessoas da Lombardia,
catalães, escoceses ou mesmo brasileiros reivindicam a independência de
Brasília, de Roma, de Londres, de Madri, perguntando- -se por que eles deveriam
ter este mediador, este intermediário. Tendências separatistas são um fenômeno
geral hoje em dia e são um produto da globalização. Estamos todos sujeitos a
este mesmo processo. A nossa interdependência já é global e, portanto, as
subdivisões são negociáveis. Não é um veredicto da natureza, ou da história, é
apenas um acordo. E todo acordo é, por definição, renegociável.
DEMOCRACIA NO BRASIL
Bem, se você quer saber a minha avaliação pessoal, o meu ponto de vista, eu sou cheio de admiração pelo tanto que tem sido feito nos últimos anos no Brasil. Um exemplo: a guerra declarada contra a pobreza. O salto para uma maior igualdade, permitindo que mais pessoas assumissem verdadeiramente um papel genuíno na vida política do País. Isso é um exemplo para todo o mundo e eu acho que o Brasil foi muito bem-sucedido na implementação deste plano. O País tirou milhões de pessoas da pobreza real e elas se sentem confiantes agora. Elas estão vigorosas, corajosas e se sentem capazes o suficiente para realmente serem uma força política em seu país. Eu sinto que os programas de melhoria social e para trazer mais igualdade realmente funcionaram.
Bem, se você quer saber a minha avaliação pessoal, o meu ponto de vista, eu sou cheio de admiração pelo tanto que tem sido feito nos últimos anos no Brasil. Um exemplo: a guerra declarada contra a pobreza. O salto para uma maior igualdade, permitindo que mais pessoas assumissem verdadeiramente um papel genuíno na vida política do País. Isso é um exemplo para todo o mundo e eu acho que o Brasil foi muito bem-sucedido na implementação deste plano. O País tirou milhões de pessoas da pobreza real e elas se sentem confiantes agora. Elas estão vigorosas, corajosas e se sentem capazes o suficiente para realmente serem uma força política em seu país. Eu sinto que os programas de melhoria social e para trazer mais igualdade realmente funcionaram.
Assim,
é de se esperar o mesmo impulso pós-prosperidade, pós-social, a mesma reação da
sociedade que aconteceu aqui na Europa. Ou, por exemplo, depois do Presidente
[Lyndon Baines] Johnson, na América, que declarou guerra contra a pobreza após
o New Deal de
Franklin Delano Roosevelt. Aquelas pessoas que, de outro modo, ainda estariam
na parte inferior da sociedade – desabilitados, efetivamente fora de ação, privados
de educação, tolhidos de competências e incapazes de subir na hierarquia social
–, essas pessoas tornaram-se médicos, advogados, professores universitários. E
a reação normal é que os indivíduos que ascenderam porque foram ajudados por
decretos, por leis, pelos subsídios especiais não querem ser lembradas do fato
de que foi por causa da assistência que chegaram aonde chegaram. Eles querem
ver a si mesmos como self-made,
repetindo “foi o meu trabalho árduo que criou isso".
Essas
pessoas ficam tentadas por uma espécie de ideologia, algo como “se eu pude
chegar aqui, por que os do norte não o fazem com seu trabalho duro? Eles são
preguiçosos demais". Há cerca de vinte anos, nos Estados Unidos, havia
algo chamado ação afirmativa. As universidades foram instruídas a dar pontos
extras para as pessoas que vinham de áreas carentes, partes até então
desfavorecidas da sociedade. Essas pessoas deveriam ser admitidas mesmo que não
passassem nos exames. Graças a isso, os Estados Unidos têm centenas de milhares
de políticos de pele negra, advogados, membros do governo, senadores e assim
por diante. Eles não conseguiriam isso se não fosse pela ação afirmativa. Mas
esses indivíduos que foram os primeiros a se beneficiar dela foram também os
primeiros a exigir que a mesma fosse abolida.
Eles
já subiram a escada e agora querem chutá-la para longe, deixando que as outras
pessoas usem suas próprias pernas, em vez de ter uma escada. Infelizmente, com
certa regularidade, isso é o que acontece. E essa é uma das razões – não a única
– pelas quais esses tipos de programas sociais que ajudam as pessoas a saírem
de sua miséria não são populares hoje em dia. Mesmo as pessoas que deviam estar
interessadas, a partir de suas próprias experiências, em manter vivas essas
políticas são, ao contrário, suas detratoras, não acreditam que seja a coisa
certa a fazer. Eu acho que a democracia no Brasil passou por um teste muito
difícil, não somente na questão de eleger o seu presidente de tempos em tempos.
Democracia é sobre habilitar os cidadãos a exercerem a cidadania de fato, não
apenas pela lei. Somos todos cidadãos por decreto, porque temos documentos, mas
isso não significa que todos sejamos capazes de nos envolver nas atividades em
que os cidadãos devem ser envolvidos. É sobre habilitar as pessoas a
participarem da condução dos assuntos do Estado. Assim, democracia é sobre
cuidar não só da opinião da maioria, mas também ajudar as minorias a terem suas
vozes ouvidas. Ter algo a dizer, em primeiro lugar, e tornar-se interessante de
ser envolvido, ser engajado. Se avaliarmos não pelo número de eleições, mas
pelo efeito sobre quantos reais cidadãos verdadeiramente existem agora no
Brasil – em comparação com, digamos, 1970 –, se usarmos essa métrica, veremos
que é uma das melhores democracias do mundo.
DESAFIOS DEMOCRÁTICOS
Eu acho que o Brasil é um país grande o suficiente a ponto de sentir o divórcio entre o poder e o Estado menos intensamente que os países menores. Os governos destes ficam realmente em apuros porque, mesmo que sejam bem intencionados, incorruptíveis e realmente queiram servir seu país, enfrentam dificuldades. Se eles seguirem a vontade de seus eleitores, ignorando a vontade da Bolsa de Valores e dos investidores estrangeiros, estarão em apuros. Esses governos não ajudarão a sua nação, o capital vai fugir e o único efeito que se conseguirá será o aumento do desemprego e a redução dos padrões de vida.
Eu acho que o Brasil é um país grande o suficiente a ponto de sentir o divórcio entre o poder e o Estado menos intensamente que os países menores. Os governos destes ficam realmente em apuros porque, mesmo que sejam bem intencionados, incorruptíveis e realmente queiram servir seu país, enfrentam dificuldades. Se eles seguirem a vontade de seus eleitores, ignorando a vontade da Bolsa de Valores e dos investidores estrangeiros, estarão em apuros. Esses governos não ajudarão a sua nação, o capital vai fugir e o único efeito que se conseguirá será o aumento do desemprego e a redução dos padrões de vida.
Os
governos, em todos os lugares, têm um duplo vínculo, como eles chamam. De um
lado, eles são eleitos democraticamente e têm que escutar atentamente o que seu
país quer e precisa ou, pelo menos, tentar atender suas demandas. Por outro
lado, há forças que são realmente decisivas para o padrão de vida e para a
perspectiva de seus filhos, netos e dos bisnetos que ainda nem nasceram. Eles
já estão decidindo sobre suas perspectivas. Tais forças são completamente
incontroláveis por parte dos governos nacionais. No mundo contemporâneo, há uma
livre circulação de capitais de investimento, de capital financeiro, do tráfico
de armas, de drogas, ignorando as fronteiras nacionais. Todas as tentativas de
controlar essa circulação, se alguma vez foram adotadas, falharam e ainda estão
falhando. Portanto, é uma faca de dois gumes: duas forças independentes, com
propósitos contraditórios e o governo está no meio.
O
Brasil, como eu disse, pertence junto com a Índia, a China e a África do Sul,
ao grupo de países que são ricos o bastante em recursos e suficientemente
grandes e populosos para resistirem um pouco mais a essa pressão. Até certo
ponto; não totalmente. Nem mesmo a China é completamente independente das
pressões globais e tem que levá-las em conta – e tem quase 2 bilhões de pessoas
lá. O Brasil está em uma posição um pouco melhor. A única coisa que o governo
pode fazer é manobrar para encontrar o caminho menos perigoso entre os riscos.
Mas o risco está lá, o tempo todo.
CLASSE MÉDIA
Há dois fenômenos diferentes: a classe média, de um lado, e os consumidores, de outro. Quando falamos classe média, ainda estamos, por inércia, lembrando da classe média clássica que se estabeleceu após a Revolução Francesa, por ter adquirido uma grande quantidade de energia, autoconfiança e coragem. Eles realmente se sentiam em casa no país, na política e assim por diante. Não eram, necessariamente, os consumidores. Max Weber escreveu um livro sobre ética protestante e o capitalismo moderno, no qual conta que a classe média realmente fez o que fez e se tornou uma parte tremendamente rica e poderosa da sociedade porque seus membros consideravam o consumo como um mal necessário: você tem que comer para ter energia para trabalhar, aprender e viver. Mas o desperdício é um pecado. Isso era simples. A ética protestante considerava um pecado mortal qualquer ostentação, qualquer gasto em coisas que não são essenciais para a sobrevivência. Você só precisa do tanto necessário para ser capaz de trabalhar mais. Do contrário, está pagando tributo ao diabo e não seguindo o mandamento divino. Isso foi o que fez da classe média uma força tão poderosa na sociedade.
Há dois fenômenos diferentes: a classe média, de um lado, e os consumidores, de outro. Quando falamos classe média, ainda estamos, por inércia, lembrando da classe média clássica que se estabeleceu após a Revolução Francesa, por ter adquirido uma grande quantidade de energia, autoconfiança e coragem. Eles realmente se sentiam em casa no país, na política e assim por diante. Não eram, necessariamente, os consumidores. Max Weber escreveu um livro sobre ética protestante e o capitalismo moderno, no qual conta que a classe média realmente fez o que fez e se tornou uma parte tremendamente rica e poderosa da sociedade porque seus membros consideravam o consumo como um mal necessário: você tem que comer para ter energia para trabalhar, aprender e viver. Mas o desperdício é um pecado. Isso era simples. A ética protestante considerava um pecado mortal qualquer ostentação, qualquer gasto em coisas que não são essenciais para a sobrevivência. Você só precisa do tanto necessário para ser capaz de trabalhar mais. Do contrário, está pagando tributo ao diabo e não seguindo o mandamento divino. Isso foi o que fez da classe média uma força tão poderosa na sociedade.
A
característica que define essa classe média é a autoconfiança. Eram pessoas que
realmente acreditavam em sua própria capacidade de agir e a colocavam à prova
diariamente. O que emerge agora, infelizmente, nas condições da crônica e
incurável incerteza do mundo, é o sentimento geral de insegurança, a falta de
bases sólidas sob os pés e, também, o sentimento de um tipo de impotência.
Mesmo que eu não seja ignorante sobre o que o dia seguinte trará, mesmo assim,
eu não seria capaz de evitar que um desastre aconteça. Há uma atmosfera geral
na qual estamos sendo constantemente tomados por surpresas desagradáveis, que
nos pegam despreparados. E nos sentimos muito desconfortáveis por simplesmente
não estarmos à altura da tarefa. Agora, sob essas condições, as antigas classes
médias estão caindo aos pedaços, elas estão perdendo seu caráter na Europa e
nos Estados Unidos, por exemplo. E, mesmo durante a recuperação pós-crise no
País, a renda da classe média americana continua a cair. Os benefícios da
recuperação são tomados por 1% das pessoas mais ricas dos Estados Unidos. Todo
o resto da classe média, ou quase todo ele, não vive sob autoconfiança, mas,
pelo contrário, sob o medo de perderem seus empregos, suas posições, suas
casas.
Guy
Standing, um sociólogo político muito sábio, deu um novo nome para a classe
média: “precariado". Em francês, há o termo precaritèe, que significa incerteza,
vulnerabilidade, não saber o que está acontecendo, pender entre a ascensão e
queda o tempo todo. Precariado
é uma mudança a partir da palavra proletariado. O que resta do antigo operário
e crescente parte do que resta da classe média tradicional vive a incerteza do
futuro e a sensação de que eles podem fazer muito pouco. A ideia de um
engraxate se tornar, pelo trabalho duro e luta, um milionário é o conto de
fadas, não funciona mais, são milagres. Há muitos e muitos anos, todos nós
acreditávamos na chamada meritocracia. O que significa que nem todas as pessoas
são iguais – isso é impossível, é inalcançável –, mas quem quer que esteja
indevidamente abaixo na hierarquia social pode, estudando muito e trabalhando
penosamente, tirar a si mesmo da miséria e prosperar, conseguir uma promoção e
assim por diante. Não é mais o caso. Na Espanha, por exemplo, 50% dos graduados
nas universidades estão desempregados, ainda à procura de emprego e não o
encontram. Talvez seja um caso extremo, mas em toda a Europa temos o mesmo
fenômeno, as pessoas que acreditaram nessa história de meritocracia realmente
se esforçaram, foram para as universidades, trabalharam duramente, por vezes
utilizando o crédito acima das suas possibilidades. E essas pessoas estão
endividadas porque precisaram pagar por essa educação e têm que quitar esses
empréstimos. Todos esses indivíduos estão frustrados porque pouquíssimos dentre
eles começam em trabalhos que estejam de acordo com as suas competências. Eles
adquiriram habilidades, trabalharam muito para isso, mas agora não há demanda
para eles. Esses jovens estão desempregados ou, então, são forçados a aceitar
alguns trabalhos péssimos, que não têm segurança, sem perspectivas de carreira
e, acima de tudo, sem qualquer relação com as habilidades que eles se
esforçaram tanto para adquirir.
Nessas
condições, é muito difícil falar sobre a classe média. Uma de suas
características era que essa classe média economizava dinheiro, eles estavam
satisfeitos em dedicar a vida a garantir uma boa educação para seus filhos.
Mesmo que eles não tivessem frequentado a escola, seus filhos disporiam de boa
educação, que abriria um caminho, um bom e agradável caminho para uma vida
prazerosa e gratificante. Não é mais o caso. Mesmo indo além das suas
possibilidades para ofertar aos filhos uma boa educação, não há nenhuma
garantia que lhes assegure o sucesso na vida. E é por isso que o termo precariado é muito mais
aconselhável para ser usado, em vez de falar de classes médias. Estamos puxando
as pessoas para fora de sua miséria no Brasil e colocando-as na classe média.
Mas não é a classe média que elas sonhavam, é uma espécie de classe média que
já é precária. Um dos efeitos dessa situação precária é que a classe média
torna-se, antes de tudo, consumidora. Seus integrantes não veem muitas
perspectivas para si próprios como criadores ativos, porque dependem do nível
do mercado, que é algo muito oscilante, como sabemos. Dessa forma, eles estão
vivendo no momento, o que é um aspecto muito importante e que define os
consumidores. Consumidores em primeiro lugar, produtores em segundo e cidadãos
em terceiro. Acima de tudo, consumidores.
CULTURA AGORISTA
Bem, é um tipo de vida em que se compensa a falta de segurança, ou a falta de perspectivas, pela tentativa de desfrutar o máximo do presente, vivendo para o presente. Sociólogos dão nomes diferentes para esse fenômeno, alguns falam sobre a “tirania do momento", outros falam sobre uma “cultura agorista". Quando o agora é imediato e “não venha me falar de longo prazo, eu não quero saber o que o 'longo prazo' vai trazer", o agora é que é importante. Antes, era preciso trabalhar muito para adquirir aquilo que se queria. Era preciso economizar por muitos e muitos anos para se obter algo, sacrificando seu tempo de lazer ou tempo livre para estudar e trabalhar, até conseguir. Agora as pessoas não gostam disso, qualquer que seja o prazer ou experiência possível, nós queremos agora.
Bem, é um tipo de vida em que se compensa a falta de segurança, ou a falta de perspectivas, pela tentativa de desfrutar o máximo do presente, vivendo para o presente. Sociólogos dão nomes diferentes para esse fenômeno, alguns falam sobre a “tirania do momento", outros falam sobre uma “cultura agorista". Quando o agora é imediato e “não venha me falar de longo prazo, eu não quero saber o que o 'longo prazo' vai trazer", o agora é que é importante. Antes, era preciso trabalhar muito para adquirir aquilo que se queria. Era preciso economizar por muitos e muitos anos para se obter algo, sacrificando seu tempo de lazer ou tempo livre para estudar e trabalhar, até conseguir. Agora as pessoas não gostam disso, qualquer que seja o prazer ou experiência possível, nós queremos agora.
Há,
inclusive, agências de viagens que anunciam “experiências imortais", basta
pagar pelas férias. É muito interessante. Viagens para ambientes exóticos que
serão uma experiência imortal. Com isso, mesmo a imortalidade se torna algo
para uso imediato. Torna-se algo como o café instantâneo, sabe? Você apenas
derrama o pó na água e, imediatamente, pode desfrutar de um café fresco,
previamente preparado. Estamos vivendo em uma sociedade de consumidores – o que
é verdadeiro – e todos participam dessa sociedade. E o que é mais notável, na
minha opinião, o impacto mais criminoso da cultura consumista é que cada loja,
independentemente do que está em suas prateleiras, do que anuncia e dos objetos
que vende, todas essas lojas são farmácias. Elas vendem medicamentos para problemas
da vida. E todos os tipos de problemas da vida, todos os caminhos para a
felicidade, todos eles passam pelas lojas. O que, naturalmente, leva à
desqualificação social dos indivíduos contemporâneos. As pessoas costumavam ter
habilidades para lutarem contra os problemas da vida real por conta própria.
Bem ou malsucedidas no risco de combater seus problemas, havia um risco e as
pessoas desenvolviam as habilidades para enfrentá-lo. Agora, essas habilidades
foram substituídas por compras.
Se,
em algum momento, você tiver filhos, como uma mãe amorosa, buscará dar o seu
amor a seus filhos. De que as crianças precisam? Elas precisam de amor. Mas o
amor para as crianças significa a mamãe ou o papai passando muito tempo com
elas, ouvindo atentamente o que está acontecendo na escola, que tipo de lição
de casa foi passada para hoje, se há um valentão tornando suas vidas
desagradáveis. Significa partilhar a vida e receber aconselhamento, sentir que
alguém se importa.
Certo,
mas assim como na sociedade, nas escolas há símbolos. As crianças olham umas
para as outras e são ridicularizadas por seus colegas se usam o tênis do ano
passado, em vez da última edição, por exemplo. Então, temos de supri-las para
torná-las felizes: eles precisam do iPhone 6 em vez do iPhone 5 e assim por
diante. Por isso, é uma relação muito dispendiosa. Você ama seus filhos, então
quer dar-lhes todas essas coisas porque ele ou ela tem medo de voltar à escola
e ouvir toda essa crítica. Mas, a fim de fazer isso você tem que trabalhar
duro, certo?
E
a divisão entre tempo de trabalho e tempo pessoal foi abolida. A divisão entre
o tempo no escritório e o tempo em casa também. A qualquer momento seu chefe
pode te ligar e você não tem desculpa de que estava fora e, portanto, o
telefone estava fora de alcance. É preciso levar o telefone com você aonde quer
que você vá – ao banheiro ou a um passeio em um bosque. E não é permitido
descartá-lo, se você se esqueceu de pegá-lo, é uma tragédia. Em alguns casos,
você pode trabalhar não sete ou oito horas, mas 24 horas. E, então, você
promete a seus filhos que irá levá-los ao zoológico no domingo. Mas no sábado
você tem que dizer-lhes que o seu chefe quer aquele relatório em sua mesa na
segunda-feira de manhã. Agora as crianças estão frustadas. “Mãmãe não me ama, papai
não me ama, eu estou sozinho e abandonado".
Portanto,
é um mecanismo de autopropulsão, a fim de satisfazer e fazer felizes as pessoas
que você ama, sob as condições de uma sociedade de consumo. Você tem que
satisfazer a sua própria liberdade pessoal, dedicar-se a trazer mais dinheiro
para sua família. Isso se você tiver sorte o suficiente de ter um bom emprego,
que pague bem; muitas pessoas não têm, e elas têm dificuldades maiores.
Portanto, você precisa fazer isso. Só que, aí, você passa a ter uma consciência
culpada porque não demonstra o seu amor, você não compartilha a sua vida; você
sabe que deveria fazer isso, mas não pode fazê-lo. E, então, você tem que
comprar presentes ainda maiores e mais caros para os seus filhos, a fim de
compensar e de acalmar sua consciência. Por isso é um círculo vicioso. O maior
sucesso do mercado, por assim dizer, consiste precisamente em suas farmácias
estarem fornecendo remédios, oferecendo promessas para problemas reais que a
sociedade contemporânea cria.
VIDAS FRAGMENTADAS
Pode-se ser humano de formas diferentes. Bem, em Londres, fala-se cerca de 90 idiomas, você pode imaginar? Eu presumo que em São Paulo exista a mesma quantidade. Tenho ouvido e lido sobre São Paulo, que as pessoas que podem pagar tentam proteger-se contra a cacofonia, contra o tumulto da rua, isolando-se em condomínios fechados, cercadas apenas por pessoas como elas, onde estranhos não são permitidos. Entretanto, quando elas saem, são novamente imersas nesta realidade multicultural. Então, se torna dolorosamente consciente que existem diferentes maneiras de ser humano. Diferentes territorialmente, diferentes do ponto de vista da cultura e tradição e, também, diferentes em termos de tempo, pois muda-se o tempo todo o tipo de conjunto de valores que são considerados essencialmente humanos.
Pode-se ser humano de formas diferentes. Bem, em Londres, fala-se cerca de 90 idiomas, você pode imaginar? Eu presumo que em São Paulo exista a mesma quantidade. Tenho ouvido e lido sobre São Paulo, que as pessoas que podem pagar tentam proteger-se contra a cacofonia, contra o tumulto da rua, isolando-se em condomínios fechados, cercadas apenas por pessoas como elas, onde estranhos não são permitidos. Entretanto, quando elas saem, são novamente imersas nesta realidade multicultural. Então, se torna dolorosamente consciente que existem diferentes maneiras de ser humano. Diferentes territorialmente, diferentes do ponto de vista da cultura e tradição e, também, diferentes em termos de tempo, pois muda-se o tempo todo o tipo de conjunto de valores que são considerados essencialmente humanos.
Uma
diferença da época em que eu tinha a sua idade para hoje, por exemplo, é que o
acesso à Internet faz parte do que é ser humano agora. Se você não pode
acessá-la, se você é privado disso, isso é uma injustiça social. Isso não
existia no meu tempo. Se você queria falar com uma pessoa, precisava sair e
encontrar os amigos, ir à casa do seu vizinho ou convidá-lo à sua. Agora, é
outra história.
De
um modo geral, há sim algo que temos de possuir. Cada um de nós precisa possuir
habilidades sociais a fim de viver em sociedade. Aristóteles disse que fora das
cidades, só os anjos e os animais podem viver. Mas nós não somos anjos e nós
não queremos ser animais, por isso estamos condenados a sermos humanos, e o ser
humano não pode viver fora das cidades. A Sócrates foi dada uma escolha entre
ingerir veneno ou ser exilado de Atenas. Ele escolheu o veneno, porque não
poderia existir fora de Atenas. Temos mudado consideravelmente em nossa
essência, mas ainda precisamos de algo para funcionar no mundo off-line. Ir para a rua,
para o local de trabalho, atender aos colegas de trabalho, levar os filhos à
escola, ir a locais onde encontraremos estranhos com os quais teremos que
passar algum tempo juntos, trocando pontos de vista e cooperando, colaborando.
Tudo isso requer habilidades sociais. E o que a sociedade consumista está
oferecendo é abrigo dessas habilidades, tornando-as redundantes.
As
habilidades não são mais necessárias. Não é mais preciso estudar, experimentar,
expandir-se; basta comprar o produto certo. Para cada problema, há algo
esperando para fazer o trabalho por você, sem a sua participação. Sua única
função é alcançar um cartão de crédito ou cheque.
Esse
é um processo relativamente recente. Quais são suas consequências a longo
prazo? Nós ainda não estamos preparados para avaliar, não sabemos. Uma
quantidade crescente da população não conhece por experiência pessoal um mundo
sem televisão, telefone celular, internet ou computador. Eles não podem
imaginar que poderia haver uma forma diferente de ser humano. É a única maneira
que eles conhecem.
Por
enquanto, o mercado tem tido bastante sucesso na luta pelo monopólio de lidar
com essa questão. Portanto, repito, o que está realmente em perigo é a nossa
capacidade de interagir socialmente. Só para dar um exemplo, ao trancar-se em
um condomínio fechado, talvez se tenha a ilusão de estar seguro em casa, certo?
Mas o que estamos perdendo é a capacidade de interagir com pessoas reais do
lado de fora, com estranhos. É a verdadeira e difícil arte que temos que
aprender. Conversar com pessoas parecidas conosco é fácil, elas estão
preparadas para aplaudir o que dizemos, são agradáveis e, antes de a conversa
começar, elas já nos entendem. Mas discutir assuntos com pessoas que possuem
diferentes pontos de vista, dos quais não gostamos, negociar algum tipo de
acordo e de compromisso, um modus
vivendi com essas outras pessoas, isso é uma habilidade. Mas,
simplesmente porque temos substitutos para essas habilidades, elas estão se
enfraquecendo e desaparecendo. Isso tem um impacto grande e de longo alcance no
modo pelo qual vivemos juntos em sociedade, mas ainda é muito cedo para
avaliar.
Fontes: Revista Comunicação Empresarial - edição de janeiro de 2015
Fronteiras do Pensamento (http://www.fronteiras.com)